Red Exhibition
Natacha Martins
27 Abril 2024 – 08 junho 2024
© Carlos Campos
A LINHA FANTASMA
Uma nova exposição de Natacha Martins traz-nos, de um modo luminoso, o resultado do seu trabalho mais recente realizado na Alemanha, onde vive, em que a tensão entre corpo e desejo toma conta das grandes telas, acentuando um tema que a vem ocupando nos últimos anos. Na obra mais recente, a presença das imagens dos corpos invade surpreendentemente todo o espaço asfixiante da tela, e os jogos eróticos entre eles definem uma espécie de dramaturgia do desejo que, entre a violência e o êxtase, introduz um novo olhar nesse campo, desde sempre pouco comum na arte portuguesa.
De facto, tomada desde sempre por uma tradição casta, e com raras exceções, a arte portuguesa dos últimos 120 anos foi parca em representar os corpos e, sobretudo, as possibilidades do seu encontro carnal, raramente ousando entrar no domínio da obscenidade, ou seja, desse fora-de-cena que envolveu longamente num segredo esse tipo de representações. A artista, rompendo pois com uma longa condição de escondimento, típica de certa hipocrisia cultural, não hesita em abraçar uma evidenciação da carne, no que nos traz desde logo um exemplo surpreendente de coragem e de ousadia. As suas telas figuram-se, assim, como que arenas onde se joga esse encontro primordial e onde a coreografia dos corpos em presença — como acontecia também na pintura de Francis Bacon — se expõe em jogos que integram por igual violência e ternura, mas que jamais receiam enfrentar a tocante realidade da própria carne no seu desvario.
Imagens poderosas, as que habitam estas telas, centram-nos o olhar sobre uma dimensão que, não tendo embora tradição entre nós, se liga a um outro código de libertação que, na arte norte-europeia e mesmo inglesa, desde os inícios do século XX, teve sempre uma forte representação, continuando assim essa riquíssima ordem do despudor que, desde a Renascença, jamais deixou de tomar lugar na arte do Ocidente. Como escrevi em outro lugar a propósito desta obra: “O que mais impressiona, porém, é que essas obras de Natacha tragam já consigo um tão profundo e consistente conhecimento do desenho, da pintura e da sua história, ou ainda que dialoguem, desabridamente quase, com Durer e Cranach, com Velásquez ou Manet, com Nolde e Klimt, Kirchner ou Schiele, Bacon ou Bourgeois, para não referir muitos outros do século XX, e mesmo com outras tradições, e que tragam uma consciência tão exata dos processos de comunicar esse saber do mundo: o simples saber do corpo e de quanto por dentro o move para fora de si, ao encontro do mundo mas, também, ao encontro do desejo que o desenha por dentro como uma força que incendeia.”
E, de facto, é com essa longa linhagem que ela se relaciona, já que, mais do que os corpos, o que fixa o seu olhar, e através dele o nosso, é justamente a capacidade de seguir a sua mise-à-nu, o processo despudorado de acercar a nudez pelos movimentos desordenados da carne, ou seja, do corpo quando é atravessado e ferido pelas forças e energias do desejo. Atentas a essa economia desejante, como acontece na obra angustiada de Schiele, as imagens surpreendem longamente não apenas os momentos dessa entrega cega aos jogos do prazer, como também, e talvez sobretudo, a capacidade de os corpos se desfazerem, através dela, da sua dimensão primeira, identitária e psicológica, para enfim penetrarem seu lugar, num outro espaço em si mesmo a-subjectivo, em que a experiência da subjectivação se liberta de todo o código normativo para se perder da anterior dimensão subjetiva em que se fixa a identidade e se abrirem, pelo êxtase, como se num trajeto místico, a outra experiência de si em que se desfaz tudo o que é da ordem do eu individual em direção a uma outra experiência e mesmo a um devir-outro do si.
Os fundos escuros, saturados, ora negros, ora vermelhos de sangue, figuram deste modo esse eclipse do espaço reconhecível para o fundir num vazio que vem acolher o recorte brutal dos corpos no ritual da passagem à dimensão da carne, aquela através da qual o desejo emerge na sua figuração mais extrema e mais urgente, e em que se perde o receio do enfrentamento da morte ao atravessar essa linha fantasma em que se dá o casamento surpreendente entre eros e thanatos. No centro de toda a experiência erótica habita o desejo, jamais suscetível de ser saciado, de libertar os corpos de tudo quanto os enforma para passar à dimensão comum do informe e da transfiguração profunda de toda a forma fixa. O erotismo abre, pois, os corpos à experiência de-formante do seu próprio movimento interno, evidenciada depois em movimentos externos que desenham desse modo uma outra imagem do corpo. É essa imagem e esse espaço turbulento de transfiguração que toma lugar na travessia da linha fantasma em que se desfaz a unidade subjetiva do corpo que o abre à experiência da carne, aquilo que, com surpreendente elegância mas não pequena violência, se figura na surpreendente e exemplar obra de Natacha Martins.
Bernardo Pinto de Almeida, Abril 2024
NATACHA MARTINS nasceu em Aveiro, Portugal, em 1997.
Atualmente vive e trabalha em Klingenthal, Alemanha.
Natacha Martins detém uma Licenciatura em Artes Plásticas (Ramo da Pintura) da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto.
Desde então, participa ativamente em exposições de grupo, e expõe nacional e internacionalmente. Projetos recentes incluem as exposições individuais I Have Read And Agree With The Terms na ArtLab24 e Confessionário na Galeria Ocupa, ambas em 2021.
A artista foi contentora do Prémio D. Fernando II XVII Edição, do Museu Municipal de Sintra em 2022, sendo a obra “The Annunciation” parte integrante da coleção do Museu. Destacam-se outras participações como na primeira edição da ReA Art Fair – Emerging Artists (Itália), na exposição Jeune Création Européenne Itenerant (Bienal D’Art Contemporain 2019-2021) e a residência artística internacional Pilotenkueche em Leipzig, em 2019.
Equipa:
Direção Artística e Curadoria: Clube de Desenho
Desenho de Exposição e Montagem: Carlos Pinheiro, Marco Mendes, Natacha Martins e Sofia Barreira
Produção: Sofia Barreira
Comunicação: Irene Loureiro e Sofia Barreira
Registo Fotográfico: Carlos Campos
Material Gráfico: Adriana Assunção
© Carlos Campos
© Carlos Campos
© Carlos Campos
© Carlos Campos
© Carlos Campos
© Carlos Campos