Da Escuridão e da Luz

Ana Torrie e Samuel Ornelas

 

10 Setembro – 15 Outubro 2022

“When we look into the darkness there is always something there”

W. B. Yeats

Habituámo-nos a associar a escuridão ao esquecimento e ao desconhecido, em contraponto com a luz, associada à ideia de revelação e de descoberta. Evitamos a escuridão, ela assusta-nos e inquieta-nos. A luz, porém, pode encandear-nos ou deslumbrar-nos. Dos territórios demasiado iluminados pode-nos interessar apenas a sombra que projectam. Por vezes, é preciso fazer o contrário de Nasredin e fugir aos locais mais iluminados para poder encontrar na escuridão as chaves que nos faltam.

Os trabalhos aqui reunidos, apresentados anteriormente noutros contextos expositivos, resultam de um espaço de intimidade e partilha entre os dois autores, construído através da contaminação mútua dos seus processos criativos. As obras aqui apresentadas propõem um entendimento da gravura – particularmente da xilogravura – como um espaço de experimentação livre, pouco condicionado às normas e às convenções da edição (resultando em tiragens reduzidas de um, dois ou três exemplares). A gravura, como meio que se fundamenta na relação entre opostos – luz e sombra, positivo e negativo, contenção e violência – é aqui utilizada para a construção de um diálogo com o espaço e com os corpos, como objectos cenográficos e teatrais, por vezes associados também à construção de esculturas ou à performance. A gravura expande-se assim para além da mesa de trabalho, dos pequenos formatos e dos pequenos gestos, para esboçar uma relação física e espacial com as imagens.

Nas paisagens da Serra do Mar (Praia Grande – SP, Brasil), Samuel Ornelas constrói um conjunto de imagens resultantes da sua experiência física e sensorial desse lugar familiar e afectivo. Desenhando no local, numa prancha de madeira pintada de negro e abrindo os espaços reservados à luz, as paisagens revelam-nos um mundo flutuante continuamente em transformação: vento, nuvens, luzes fugazes, texturas e ritmos descobertos no processo da observação e do registo gráfico, na experiência do tempo como duração. O desenho que está na génese destas imagens, poderia ser pensado através da inversão do mito da origem do Desenho: não se trata do gesto do contorno da silhueta do amante através da sombra projectada na parede, mas sim, de assumir o plano da imagem como um quarto escuro, um abismo infindável onde apenas o que é intersectado pela luz se revela como presença.

Em “Leva-me este recado ao cais” (obra realizada em colaboração, a partir de uma performance da artista Dóris Marcos), um emaranhado de sobreposições de figuras em movimento constrói uma teia de vultos anónimos que se confundem e misturam. Fundem-se no caos, não se vê nada, como se o breu da noite e a violenta imensidão do mar os envolvesse e anulasse, cingindo-os ao esquecimento. Nas gravuras de Ana Torrie, o imaginário da infância serve como palco para um teatro grotesco e desgovernado, onde as crianças assumem todos os papéis, encenando alegorias e jogos de poder, danças e coreografias. Um teatro ao qual se volta periodicamente, repetindo gestos, inventando e quebrando regras, imitando o dramatismo de um mundo de poses e estatutos ilusórios. Em “Nós, as filhas da lama”, as figuras emergem da escuridão do mar, como fantasmagorias, náufragos ou almas penadas de um submundo Dantesco, enunciando um diálogo com os corpos de “Leva-me este recado ao cais” de Samuel Ornelas.

 

Nuno Sousa

Biografia


Ana Torrie, 
Porto, 1982
Artista/gravurista, Pós-graduação em Gravura, Mestrado em Desenho e Técnicas de Impressão e Licenciatura em Escultura na FBAUP. Tem obra em colecções privadas (Fundação Calouste Gulbenkian, Berardo) e públicas (Bienal de arte de Espinho, Câmara Municipal de Ovar, Tribunal da Relação do Porto, Colecção Arte Contemporânea Câmara Municipal do Porto, Colecção Arte Contemporânea do Estado Português).

Na publicação, a destacar as gravuras feitas para as ilustrações da programação 2017 da Casa da Música no Porto, as capas da Editora Antígona e as capas dos álbuns musicais “Motor” – de Peixe, “Vox FloravVox Fauna” de Ece Canli.

www.anatorrie.com
[email protected]

 

Samuel Ornelas, Santos – SP, 1986
Estudou design gráfico e pintura e dedica-se à xilogravura desde 2007, em que o ato de gravar simboliza a sua (nossa) existência. Cresceu junto à Serra do Mar e ao Atlântico (Brasil), lugares que se manifestam na sua atitude artística até hoje. Vive feliz, no Porto, desde 2016.

www.samuelornelas.com
[email protected]

Equipa:

 

Direção Artística e Curadoria: Clube de Desenho

Desenho de Exposição e Montagem: Ana Torrie, Samuel Ornelas, Sofia Barreira

Assistência de Montagem: Carlos Pinheiro, Diogo Nogueira, Marco Mendes 

Produção: Sofia Barreira

Material Gráfico: Carlos Pinheiro

Registo fotográfico: João Pádua

© João Pádua

© João Pádua

© João Pádua

© João Pádua

© João Pádua

© João Pádua

© João Pádua