AS ESTÁTUAS TAMBÉM MORREM
FABRIZIO MATOS
16 Dez. 2023 – 20 Jan. 2024
© Carlos Campos
AS ESTÁTUAS TAMBÉM MORREM
«Enquanto vós, sem advertir a sua expansão,/ lamentais os vossos dias que murcham, é a Vida/ em busca de vida nos corpos que temem a morte./ Aqui não há morte.» (1) É o poeta que fala, de um lugar que, tal como a escultura clássica, procura a anonimidade, a universalidade. Mas este lugar de fala tem uma origem, uma raiz num povo e numa cultura. Num tempo. As estátuas também morrem. Mas morrem porque se lhes retira a alma, não porque deixam de existir, ao contrário do homem que as cria. Morrem porque o estatuto que lhes foi algures no tempo atribuído deixa de ter expressão cultural, por razões históricas e sociais. Arqueologia e museologia, estrategicamente apropriadas pelos esforços imperiais e estatais de domínio civilizacional, pilharam e catalogaram a estatuária, mesmo que “de origem desconhecida”, numa tentativa de manipulação da memória e, assim, de afirmação de uma pretensa e autoproclamada superioridade.
As estátuas, no seu estado de inércia e de contemplação perpétua, são frentes de batalhas. As dos séculos XIX e XX, mais presentes no discurso e ação pós-colonialistas, encontraram no ativismo woke o seu maior opositor. Multiplicam-se os episódios de estátuas de colonizadores e escravizadores, outrora líderes e heróis nacionais, derrubadas e pichadas. A clássica, por seu lado, mais distante e integrada na memória coletiva, resiste num estádio de adormecimento voluntário, porque representa pilares civilizacionais desejavelmente inabaláveis. Aonde regressamos sempre que percorremos a linha histórica da cultura ocidental. De tal modo integrada no nosso imaginário, no nosso “sentimento de si”, que não concebemos questionar. A não ser quando, no centro da nossa civilização, outros centros são questionados. Como quando, agora mesmo, o Estado grego pede a devolução de frisos do Pártenon ao British Musem. Existe, também neste ato, o ressuscitar de uma memória: de lugar, de tempo, de raiz e cultura, de ancestralidade. Mas, e quando as estátuas ressuscitam? Quando submergem do fundo do mar ou se erguem de sob as cinzas milenares de um vulcão?
«Como foram breves os dias que passei aqui/ e mais breves ainda as palavras que trocámos,/ mas se a minha voz se extinguir/ e o meu amor se desvanecer na vossa memória,/ voltarei de novo.» (2)
As estátuas que vemos nas pinturas de Fabrizio Matos como que completam um ciclo: são atletas, corredores, esculpidos na Roma antiga, que a terra engoliu – através do vulcão de Pompeia e do mar Mediterrâneo – e que o homem recuperou dos seus túmulos naturais, devolvendo-lhes dignidade expositiva (estão agora no Museu de Nápoles) e, desta forma, o seu estatuto de elemento de fixação de memória.
Aqui não se vela o recurso à máscara – não no sentido de recurso a uma persona representativa de uma cultura que se quer eternizar, da imagem de um momento humano que se quer perenizar, mas no sentido pictórico e plástico, de cobrir de camadas de tinta e apagamento e novas pinceladas ou, no caso, spray. A máscara é um recurso pleonástico, na busca de uma profundidade perdida, no respeito pela representação que ganhou vida e, com aparente facilidade, a perdeu, para a recuperar novamente.
Fabrizio Matos é um pintor de essência escultórica. Poder-se-á dizer que pinta a partir da escultura. A sua imagética é povoada por referências alinhadas por um sentido histórico, pessoal e universal. Várias visitas recentes à região de Puglia em Itália, onde recentemente também descobriu ter parte das suas raízes, aproximaram-no de Pompeia e de uma ideia de memória ancestral soterrada, de tempo abafado por camadas de pó de lava vulcânica e esquecimento. Nestas pinturas, o uso do spray e a cor desfasada do desenho remetem-nos para o fresco, sublinhando a ideia de desvanecimento gradual da imagem, equiparável à memória e ao seu desgaste temporal.
Uma memória que se revela enfim volátil. Porque antes de ser memória foi fixação. Sem outra visão ou desejo que a do registo, sem camadas outras que as de um quotidiano epocal. Desejo de eternidade. Com que o tempo vai jogando o jogo da vida.
«Ser de hoje ou de sempre/ nada disso importa/ todo o tempo corre/ só por nossa conta» (3) , poderiam dizer estes corredores resgatados das cinzas e do mar.
Gisela Leal, 2023
(1) Khalil Gibran, “O Adeus Final”, in O Profeta, Coimbra: Alma Azul, 2006.
(2) Idem.
(3) Carlos do Carmo, Retrato¸ in Carlos do Carmo & Bernardo Sassetti¸ Mercury Records: 2010.
FABRIZIO MATOS
Vive e trabalha no Porto. leciona ocasionalmente na FBAUP onde se licenciou em Pintura e fez o Mestrado em Escultura. O trabalho desenvolve-se em variados medias sobretudo no desenho, centrando-se entre a memória e o velado, sobre o desejo de mistério e a procura do desconhecido ou esquecido num espaço sem tempo onde contrasta o velho e o novo na paisagem.
É fundador do coletivo Pedra no Rim.
Nos últimos anos fez exposições individuais na Dentro, na Sala 117 no Porto e no Colégio das Artes de Coimbra. Expôs também no Carpe Diem em Lisboa, tem participado em residências artísticas assim como em exposições coletivas como por exemplo A Sala de Som, no âmbito da programação do Museu da Cidade com curadoria de Nuno Faria, ou Pictures and Cream comissariado pelo Paulo Mendes na Galeria Cristina Guerra em Lisboa.
O seu trabalho está representado em várias coleções nacionais como a Fundação PMLJ e a Coleção de Arte Moderna e Contemporânea Norlinda e José Lima e em outras coleções privadas internacionais.
A obra está presente em catálogos e edições de autor.
Equipa:
Direção Artística e Curadoria: Clube de Desenho
Desenho de Exposição e Montagem: Carlos Pinheiro, Fabrizio Matos, Israel pimenta, Marco Mendes e Sofia Barreira
Produção e Comunicação: Sofia Barreira
Registo Fotográfico: Carlos Campos
Material Gráfico: Adriana Assunção
© Carlos Campos
© Carlos Campos
© Carlos Campos
© Carlos Campos
© Carlos Campos
© Carlos Campos